Santa Monotonia
- Rita Robalo
- Aug 22, 2017
- 10 min read
Há uns tempos tive o enorme prazer de poder produzir a capa do Cd de Manel Ferreira: Santa Monotonia.


Sortuda, eu, Ana Rita, por pertencer a uma família tão dotada e dedicada, que cria coisas belas.
Pude entrevistar o meu talentoso e humilde cunhado e colocar-lhe umas simples questões, sem qualquer tipo de pressão.
Na altura, a entrevista serviu-me para para um projecto destinado a uma revista de Design (Quo Vadis), mas, com o consenso do Manel, pude partilhá-la com leitores curiosos:

O artista apresenta-se
Manel Ferreira, 24 anos, cristão evangélico e assistente de marketing na Vodafone. É casado com Mariana Ferreira, desde Março de 2016. Nos tempos livres é músico caseiro, pela editora FlorCaveira, com banda recentemente organizada. Depois do primeiro projeto "Pela Surra", prepara-se para lançar brevemente "Santa Monotonia", um projeto mais pessoal e ambicioso que o primeiro, mas também muito caseiro.
Entrevista
Manel, como é a tua semana? Como divides tu o tempo nas tuas atividades?
Tenho uma semana muito normal mas cheia. Mas, como disseste, o difícil é a divisão desse tempo de uma maneira que honre as prioridades (e saber tê-las, claro). Mas a resposta ficaria complexa e longa se desenvolvesse esse tema, por isso diria que, basicamente, é dividida entre família, igreja e trabalho. Sou casado, trabalho em Marketing na Vodafone, e tenho também responsabilidades na igreja local de que faço parte. Tento não me comprometer com coisas a mais nem com atividades escusadas, e confesso que é uma tentação fazê-lo.
Conta-nos como produziste o teu primeiro Cd.
O primeiro Cd acaba por não ser uma produção propriamente dita. Foi um projeto paralelo que foi acontecendo, devagar e com muitas músicas "mal-amanhadas" que nunca viram a luz do dia. Na prática, esse primeiro Cd está dividido em dois projetos diferentes, que juntei num só. O primeiro, que tem todas as faixas escondidas, foi um Cd completamente sem filtro, gravado no meu quarto, em que eu compunha as letras e gravava os instrumentos, sem grande reflexão ou preparação. Numa ou duas músicas, a música foi composta e gravada, tal como aparece no Cd, após uma a duas horas de acordar, o que não correu muito bem.
Talvez por isso tenha muitas dificuldades ainda hoje em ouvir esse primeiro projeto (daí o ter escondido). O outro, que tem as músicas numeradas no Cd, já teve mais reflexão na composição (mas nāo muita) e conta com participações de alguns amigos talentosos. Oito amigas e um amigo! Mas, à exceção da Rebeca, nenhum deles tinha experiência musical, e alguns estavam praticamente a ouvir-se cantar pela primeira vez. O que resultou num lado muito cru e sincero ao Cd, e do qual, pessoalmente, gosto muito.
Foi um álbum que me fez perceber que consigo lidar muito melhor com as músicas que componho quando convido outras pessoas para as retirarem do meu círculo criativo fechado. Como se as músicas passassem a surpreender-me em vez de serem previsíveis.
E o que te levou a criar este segundo CD, "Santa Monotonia"?
Muito sinceramente, fui "picado" por amigos que insinuaram que já não fazia músicas há mais de um ano – o que era verdade. Nas duas semanas seguintes concentrei-me mais na composição e compus aquela que é a grande parte do cd.
O meu problema sempre foi mais controlar a minha língua do que soltá-la, por ter a tendência a achar que tenho sempre muitas coisas a dizer. Por isso, o processo de criação de uma versão mais bruta do álbum foi relativamente rápida.
Depois teve um período de maturação, que foi importante. Os últimos dois anos foram muito marcantes na minha vida e muitas coisas importantes aconteceram e foram decididas – o casamento acaba por marcar muito a narrativa do álbum.
Consideras este teu novo projeto muito mais pessoal? O que te inspirou?
Sim, sem dúvida. Como já disse, este projeto teve um timing único. Começou a ser feito quando eu comecei a pensar seriamente no casamento, sem ter sequer uma mulher em particular em mente, e terminou poucos meses depois do meu casamento com a minha Mariana – que canta em muitas músicas do cd. Por isso, há músicas, na fase inicial do Cd, em que escrevo sobre a necessidade de viver já como estou (solteiro), sobre ser grato satisfeito como estou e não pôr o casamento num lugar demasiado alto onde não deve estar. Depois, há músicas em que falo da surpresa e do desmerecimento de ter conhecido a Mariana e ter começado a namorar com ela. E acaba com outras em que escrevo sobre a forma como querer viver o casamento, que entretanto já tinha acontecido. You can’t get more personal than that, parece-me. Claro que há músicas que fogem mais a esta narrativa, umas por serem uma brincadeira meta sobre as minhas próprias músicas, outras por serem para amigos importantes.
Como chegaste ao nome do CD?
Estás a desmascarar a minha falta de criatividade – não cheguei, chegaram lá por mim. O nome do CD surgiu de um elogio que um amigo meu fez ao seu próprio casamento. Normalmente associamos monotonia e rotina a uma coisa má e indesejável. Mas nenhum de nós aguentaria a montanha-russa dos primeiros tempos de uma relação, em que tudo é novo e tudo é excitante sem grande esforço nosso, durante muito tempo. A monogamia em série que vemos hoje em dia acaba por ser um bom teste do algodão. “Santa monotonia” contrasta estas duas ideias que parecem que contradizer-se sem o fazer. E é o estado atual das coisas na minha vida e o que desejo para a minha vida – uma santa monotonia.
Como explicas a participação de tantos artistas neste CD?
O mesmo que me conquistou no primeiro álbum, o fugir do meu círculo fechado de criação e conseguir lidar com as minhas músicas, mas alargado aos instrumentos também. E, ao contrário do primeiro projeto, queria ter uma banda fixa para dar mais coesão ao álbum e aos concertos. E, não menos importante, tive o enorme privilégio de ter músicos incrivelmente talentosos que levaram as minhas ideias a sítios que eu nunca pensei – nesse sentido, queria mais pessoas para que a minha pessoa não fosse tanto o ponto.
Qual é o teu objetivo principal neste novo projeto?
Este projeto, tal como o outro, mas de uma maneira mais marcada, está muito ligado à minha fé (sou cristão evangélico). E a fé traz os temas das letras e a vontade de falar com isso com mais pessoas. Por isso, e como em tudo na minha vida, o objetivo principal passa por este álbum poder fazer sentido para outras pessoas, quer me conheçam ou não, e que leve a boas conversas.
Claro que os sonhos da adolescência de ter uma banda que seja ouvida por muita gente diferente que gosta e está muito presente – e estaria a mentir se dissesse que essa ideia não me entusiasma. Mas, não é o objetivo principal. Se fosse, então o que eu tinha escrito não faria sentido e não teria passado de um bluff manhoso para conseguir ter fama e reconhecimento. A questão não somos nós, pois não?
Para quem conhece o teu trabalho e estilo de música, o CD revela-se, graficamente, muito diferente do habitual. Podes explicar a relação da capa do CD com o conteúdo do mesmo?
A capa do CD, que é um trabalho incrível da Ana Rita Robalo, tem mesmo esse objetivo de contrastar: gosto muito de paradoxos (mais uma vez, um paradoxo não é uma contradição). Queria apanhar a ideia do título do projeto, ligá-la a uma das músicas também (Florescer no Inverno) e continuar a pôr de mãos dadas conceitos contrastantes. A caveira com a aridez e crueza que lhe é associada, e a flor que segura, à frente do fundo invernoso, com essa vida e inocência.
Acaba por ser uma ideia já da editora, FlorCaveira, criada por um pastor conservador e pai de quatro filhos que tem bandas de trash metal. Os cristãos amam paradoxos, e eu não sou diferente.
Gostarias de viver no estrangeiro ou tens o desejo de viajar?
Não conheço os planos de Deus para o meu futuro, mas não gostava de viver fora de Portugal. Nunca me cativou a ideia de me afastar da família, igreja e dos projetos com os quais já estou envolvido (a não ser por uma muita boa razão).
Mas, apesar de viajar pouco, gosto muito de viajar. Ainda há pouco tempo estive em São Tomé e Príncipe e voltei para casa a ver o meu próprio país de maneira diferente, e com um amor maior por África. Isto, claro, se me esquecer do quanto não gosto andar de avião. Dispensava essa parte.
Consideras-te uma pessoa obsessiva? És obsessivo em relação à tua casa, aos teus projetos, às redes sociais, etc.?
Andas-te a falar com a minha mulher! Sim, luto bastante contra isso. Podemos retirar as redes sociais do ringue, porque não tenho uma relação próxima com elas. Mas em relação às outras tarefas, tenho de aprender a descansar mais no processo, e não só na conclusão.
A minha tendência é tornar-me muito intenso e monotemático até a tarefa estar terminada. Nas gravações, por exemplo, cheguei a acordar às 7h30 da manhã de um sábado para ir gravar músicas – e não digo isto com orgulho, mas com alguma vergonha.
A intensidade é uma característica a trabalhar, seriamente, e a minha mulher tem uma paciência para me aturar que faz um ateu crer nos dons do Espírito Santo.
Do que é que tens mais orgulho no teu trajeto ou no teu trabalho já concretizado?
Vou assumir que a pergunta se refere ao percurso na música em particular (se não isto ficava outra vez muito complexo). Provavelmente, gosto e quer manter e melhorar a sinceridade da composição e das gravações. Gosto que não exista um abismo a separar o Manel que faz músicas do outro Manel, mas que seja difícil de diferenciar os dois. Mas ainda há muito caminho para percorrer, e o orgulho pode ser um bicho difícil de domar se não lhe pomos uma trela.
Tens um livro favorito? Qual o livro que mais te marcou até agora?
Essa pergunta traz sempre uma resposta bastante monótona de um cristão evangélico. A Bíblia não deixa de ser um livro – perceber um Deus infinito que escolhe revelar-se através da Palavra escrita é uma realidade que nos devia espantar mais. É um livro que planeio ler todos os dias da minha vida, mantendo a terrível monotonia de não deixar de ser corrigido, espantado e moldado por ele.
As Crónicas de Nárnia, do C.S.Lewis, e Os Miseráveis, do Vitor Hugo, que li já em adulto, também foram livros que deixaram uma marca em várias áreas da minha vida. Gosto muito de analogias forte a partir da ficção.
Qual o melhor conselho que já te deram?
Pode não parecer um conselho direto, mas mudou muito a minha forma de ver praticamente tudo, e a mim mesmo.
“Se perceberes que só mereces o inferno, percebes que tudo o que é dado para além disso é graça.”
Aliás, esse conselho deu o refrão da música Florescer no Inverno.
E que conselho darias a alguém que tenha o desejo de compor música?
Não me sinto numa posição de dar conselhos como músico, mas posso dá-los como ouvinte!
Diria que, se tens vontade de compor músicas, certifica-te que o que sai não é uma imitação barata de alguém mas um reflexo sincero do que acreditas e queres passar a outras pessoas. Citando um comentário de um amigo meu (o meu pastor, por sua vez), “Eu gosto de ouvir discos de pessoas que têm coisas para dizer, até para dar um intervalo nos discos com pessoas que dizem coisas sobretudo porque sabem dizê-las.” E, se nunca compuseste nada, um início de composição atabalhoado e desconfortável para ti também faz parte dessa sinceridade – eu ainda estou nessa fase!
Como fazes a escolha das letras das tuas canções? Quais os teus critérios?
Está ligado com o que disse há pouco. O critério geralmente e querer dizer alguma coisa que me é importante, porque isso é o que me dá o combustível para escrever. Claro que há músicas mais descontraídas que não falam de nada importante – essas, geralmente, até são as mais divertidas de tocar e compor.
Os Cinco Acordes, deste Cd, não fala de nada de importante mas gosto muito do resultado final apesar disso. O critério acaba por ser uma avaliação se faz sentido para mim e é coerente com o que acredito e pode fazer para outras pessoas.
Entre o dia presente e o dia de amanhã, a qual deles dás a tua prioridade?
O Samuel Úria tem uma frase, na enorme canção que é o Império (se nunca ouviram, deviam ter vergonha), que diz “vem mais da eternidade que do amanhã”. Os cristãos têm de ser pessoas que vivem bem o presente e não temem o futuro, por causa da eternidade que existiu e sempre vai existir, e para a qual vamos. E lá voltámos nós aos paradoxos outra vez.
E, atacando os extremos, se eu viver tão obcecado com o futuro que isso me faz uma pessoa completamente desinteressada do presente, isso faz de mim uma pessoa intragável. Se eu viver o presente, não ligando patavina ao futuro e para onde me estou a dirigir, isso faz de mim uma pessoa igualmente intragável.
Como o Samuel diz, é deixar que a eternidade entre no presente e viver esse presente com todo o coração.
O que tentas transmitir com a tua música?
Fé, espero sempre transmitir. E, correndo o risco de soar tremendamente cliché, espero que amor seja algo palpável nos meus projetos. De nada me vale a autenticidade e sinceridade se isso não se traduzir em mais amor.
Todos nós erramos. Podes compartilhar um pouco dos teus receios e dificuldades no teu trabalho?
Há sempre o receio de falhar, claro. E podemos falhar de várias maneiras. A que provavelmente me assusta mais é a possibilidade do meu ego crescer ou a possibilidade daquilo que eu escrevo ou componho jogue contra aquilo em que acredito – quer pela maneira como as pessoas interpretam, quer pela maneira como eu o faço. Mas Deus é bom, e tem-me corrigido neste processo.
As dificuldades às vezes prendem-se também na execução – tento fazer um esforço, nem sempre com frutos, de não soar sempre ao mesmo. Daí convidar mais pessoas para me ajudarem nisso. E conjugar a música que não é uma prioridade com as minhas prioridades, sem dúvida que é um grande desafio.
O que farias se tivesses só mais um dia para viver?
Sabes que isso é um exercício que tento fazer regularmente. Aliás, a música História em Nós, em que a Ana Rita Braga Robalo que fez a maravilhosa capa canta, fala exatamente sobre isso. Sobre viver cada dia lembrando que Deus nos pode chamar a qualquer momento. E isso, paradoxalmente (lá vamos nós outra vez), faz-nos viver com mais vontade em vez de menos. Um exercício básico que uso nas minhas decisões, principalmente as que me deixam mais ansioso, é pensar “o que é que isto vai importar daqui a um bilião de anos?”.
E não me interpretem mal – há coisas que fazemos agora que vão importar, e muito, daqui a um bilião de anos. Mas há outras que não. Isso faz, por exemplo, com que me preocupe mais em cuidar e amar a minha mulher do que em fazer músicas. Em orar, quando não me apetece nada, em vez de ir ver golos no Youtube (também há lugar para os ver).
Respondendo então à pergunta – gostava de viver todos os dias assim, e de não ter nesses último dia um dia assim tão diferente (com as devidas diferenças, claro). Ter a noção que cada dia pode ser o dia em que Deus me chama, e isso não ser uma coisa má. Mas queria estar com a minha Mariana o dia todo, isso é certo.
Comments